top of page

Traumas

Márcio Antonio Altilio Moreira
Psicólogo - CRP 04/13451

Introdução

As informações que serão expostas a seguir foram elaboradas com a finalidade de proporcionar ao cliente em psicoterapia uma visão simplificada do processo traumático, bem como formas de atuação que podem facilitar a elaboração desses traumas. O assunto é extremamente complexo e, a cada dia, surgem novas informações a respeito.

Sempre ficava curioso de como os animais que são caçados por predadores nas selvas africanas conseguem pastar tranquilamente, sem demonstrar nenhum temor. De vez em quando eles percebem alguma coisa no ar e param, olham em volta e estão, imediatamente, preparados para a fuga. Se não acontece nada, a fuga não se torna necessária e eles retornam a sua tranquilidade habitual. Como nós humanos viveríamos nessas condições, onde um erro pode custar nossa vida? A reação desses animais me parecia a melhor e mais efetiva, mas como o ser humano poderia fazer isso? Pesquisando sobre o assunto deparei-me com um trabalho de Peter Levine sobre o trauma físico e psicológico. Ele também se interessou por essas reações dos animais e decidiu pesquisar sobre o tema. O fez por mais de 30 anos e suas conclusões apontam para algumas maneiras de se tratar o trauma, bem como evitá-lo. Apresentarei aqui algumas conclusões dele e de outros autores, bem como o que pode advir de situações traumáticas na infância e na vida cotidiana. Também abordarei algumas formas terapêuticas que podem conduzir à normalidade.

Primeiramente pretendo trabalhar os traumas num sentido amplo, incluindo tanto traumas de grandes proporções tais como acidentes, assaltos, guerras, abusos sexuais, que lidam diretamente com a vida física, quanto os Eventos Perturbadores de Vida (Shapiro) que surgem lentamente em nossa existência, através da perda de apoio, negligências, cobrança excessiva, desvalorização etc.

Sintomas

Os sintomas que podem advir de um trauma, segundo Lavine (p. 48), são: “flashbacks, ansiedade, ataques de pânico, insônia, depressão, queixas psicossomáticas, dificuldades de se abrir, ataques de raiva violenta e não provocada e comportamentos destrutivos repetitivos”. Podemos ainda encontrar transtorno do humor, transtorno de personalidade, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), fobias, abuso de substâncias etc. Se considerarmos os traumas psicológicos sucessivos, isto é, devidos ao desenvolvimento do indivíduo, podemos ainda encontrar inúmeros outros sintomas, tais como: insegurança, timidez, bloqueios de desempenho, vícios diversos, dificuldades em relacionamentos afetivos, em lidar com dinheiro, em emagrecer, em se estabelecer profissionalmente etc.

Respostas do SNC – Luta, fuga ou congelamento

Nosso Sistema Nervoso responde às situações de perigo preparando nosso corpo para lutar ou fugir. Quando cessa a situação estressante o esperado é o retorno ao estado de tranquilidade anterior ao evento. Entretanto isso nem sempre ocorre e a resposta fica congelada no Sistema Nervoso com as mesmas emoções e sensações corporais que surgiram no momento do perigo. Essas cargas energéticas ficam presas em memórias dependente-de-estado em nosso corpo e qualquer situação semelhante, tais como lugar, cheiros ou sons podem disparar o mecanismo de proteção como se a situação estivesse prestes a se repetir. Quando isso acontece o corpo reage fisiologicamente, gerando as mesmas sensações de alerta que aconteceram no evento inicial. Como o indivíduo não percebe nenhum perigo real, sente-se impotente e temeroso para evitar que tal sensação torne a ocorrer e isso pode conduzir a uma retraumatização, agravando o quadro anterior. Essa situação é denominada de Ataque de Pânico.

O mesmo que acontece com situações traumáticas de intensidade elevada também sucede com as de intensidade menores, embora não disparem reações fisiológicas violentas, também descarregam hormônios excitantes do Sistema Nervoso Central. Esses casos podem dar origem à timidez, ansiedade, fobia, alteração comportamental, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), vícios diversos, bloqueios de desempenho etc. Normalmente não acarretam grande prejuízo às atividades cotidianas, mas causam dificuldades em campos específicos, limitando o potencial criativo, laborativo, estudantil, desportivo, dentre outros.

As memórias traumáticas ficam armazenadas no SNC, mais precisamente no sistema límbico-hipotalâmico-hipofisário, em memórias dependentes de estado. Uma vez que estas experiências ficam gravadas tanto na mente quanto no corpo, podem ser acionadas quando ocorre algum evento que reúna sensações semelhantes as que aconteceram no momento do evento traumático. Embora o indivíduo possa não se recordar do evento traumático, essa estimulação sensória ativa o sistema límbico-hipotalâmico-hipofisário que libera os hormônios ligados ao estresse. Em razão de a sensação ser tão intensa provoca no individuo horror semelhante ao original, embora sem a percepção de algum fato estressante.

Segundo Grand (p. 93), devido ao desenvolvimento do cérebro humano, “um bebê registra um trauma no cérebro primitivo; um bebê um pouco mais velho reagirá na região um pouco mais desenvolvida do cérebro; uma criança começa a ter acesso ao cérebro que pensa (neocórtex), embora não possa reagir da forma que um adulto o faria, pois a compreensão sofisticada está muito além de suas condições”. Ainda de acordo com ele (ibid) “quando as conexões de processamento de informações se rompem ou não se desenvolvem (o que costuma ocorrer nos casos de trauma intenso ou repetitivo), a dissociação provavelmente se dará”. Em função dessa dissociação, que provoca um esquecimento consciente do(s) evento(s) traumático(s), os sintomas do trauma podem surgir muitos anos após, às vezes na adolescência, outras na vida adulta. É em função desse mecanismo da mente que muitas vezes não se consegue um desenvolvimento pleno ou mesmo se adquire patologias complexas. Nossas emoções ficam congeladas, ancoradas no trauma e, muitas vezes, por maior que seja o esforço, não se consegue ir para frente.

Classificação

Os traumas podem ser classificados quanto ao tipo em físicos ou psicológicos, quanto à duração dos sintomas em agudo, crônico ou com início tardio e quanto à intensidade em moderado ou elevado. O objetivo aqui é demonstrar a relação entre os eventos traumáticos (físicos e psicológicos) e sua manifestação através de sintomas psicológicos.

Quanto ao tipo:

Trauma físico – é aquele que tem sua origem em eventos que atingem o corpo somático, tais como acidentes, violência física, abusos sexuais etc. Um trauma físico pode desencadear também um trauma psicológico que se mantém mesmo após a cura do corpo. Em alguns casos a dor física originada de um trauma de qualquer amplitude pode continuar mesmo após a cura completa. São conhecidos casos de dor no membro fantasma (resultantes de uma amputação), sensação dolorosa em locais traumatizados fisicamente, embora já curados (joelhos, braços etc.), bem como quaisquer outras manifestações dolorosas persistentes mesmo após a cura completa. Nesses casos podemos compreender que a sensação dolorosa continua gravada na mente, alocada em memórias que ativam a sensação de dor física quando certas situações estiverem presentes.

Trauma psicológico – é aquele que atinge a mente do indivíduo, podendo perdurar por longo tempo sob aspectos diversos. Trata-se de uma resposta adaptativa diante de situações que variam de grande perigo a “Eventos Perturbadores de Vida”. Os sintomas surgem como manifestação natural a um evento traumático, mas “adquire vida própria e persiste quando já não é necessário. Os sintomas se desconectam da fonte que lhes deu origem”. (ARAZI, Diana et all, p. 45)

Quanto à duração dos sintomas do trauma psicológico:

 

De acordo com o DSM-IV (p. 453) a duração dos sintomas do trauma pode ser classificada conforme abaixo:

  •  Agudo – O trauma é considerado agudo quando a duração dos sintomas é inferior a 3 meses.

  • Crônico – O trauma é considerado crônico quando a duração dos sintomas é superior a 3 meses.

  • Com início tardio – Quando decorreram pelo menos 6 meses entre o evento traumático e o início dos sintomas.

 

Quanto à intensidade dos traumas psicológicos

Moderado – Francine Shapiro denomina estes traumas de intensidade baixa a moderada como “Eventos Perturbadores de Vida”. Esses eventos podem originar Bloqueios de Desempenho (Grand), Crenças Limitantes (Robles) ou Postulados de Caráter (TenDan). Apesar de esses traumas serem de baixa amplitude eles podem atuar de modo muito profundo no indivíduo. Por serem pequenos em sua força individual é comum passar despercebido e ser negligenciado. Normalmente são cumulativos, ou seja, são experienciados durante um grande período de tempo e, com frequência, conduzem a grandes frustrações. Diferentemente como se poderia supor, podem ser mais renitentes em sua resolução. Vejamos cada um deles:

  • Bloqueios de Desempenho: A vida está repleta de situações que, embora não traumáticas no sentido estrito da palavra, contribuem para aprisionar o indivíduo numa rede de memórias que acabam gerando bloqueios em algumas áreas importantes da vida do sujeito. Por exemplo, sucessivas tentativas frustradas de encontrar um par afetivo podem gerar um bloqueio que dificulte a busca de um relacionamento. Eventos desse tipo também podem ser causas de limitações em atividades esportivas, sucesso profissional, passar em concursos e muitos outros.

  • Crenças Limitantes: As crenças limitantes são declarações que restringem o potencial do indivíduo em um campo determinado. As crenças podem emergir de Eventos Perturbadores de Vida ou de sentenças proferidas por parentes ou pessoas que exercem (ou exerceram) alguma influência sobre o sujeito. Essas crenças podem se manifestar em qualquer fase da vida, mas sua origem, normalmente, se encontra na infância. Embora as crenças se assemelhem aos postulados, sua abrangência é circunscrita a alguns campos, enquanto que no postulado o alcance é amplo. Alguns exemplos de Crenças Limitantes: “dinheiro não traz felicidade”, “tudo que é bom engorda”, “eu tenho uma péssima memória para números” etc. Crenças deste tipo impedem a realização nos campos de sua influência.

  • Postulado de Caráter - Hans TenDan em sua abordagem sobre o trauma psicológico considera que alguns eventos podem dar origem a Postulados de Caráter. Um postulado funciona automaticamente em nível inconsciente, como um programa, sendo sempre acionado quando nos deparamos com sensações ou situações previstas em seu campo de atuação. De modo geral, os postulados definem o indivíduo (p.ex. eu sou burro), as pessoas (p.ex. todos são falsos) ou o mundo (p.ex. “nada é real”). Os postulados podem surgir de situações comuns, tais como algum tipo de rejeição ou através de declarações sobre o indivíduo feitas pelos pais, professores ou pessoas importantes na vida do sujeito. Os postulados causam diversos tipos de bloqueios, limitando a existência, pois sua abrangência se dá em todos os campos da vida do indivíduo. Considero como Postulado de Caráter apenas as situações extremamente rígidas, que passam a definir o sujeito ou as pessoas ou o mundo como se fosse um rótulo, sem aventar a hipótese de modificar sua posição, ou seja, com rigidez muito intensa. Como exemplos desses postulados podem-se citar: não confio em ninguém; todos os homens (ou as mulheres) são falsos; o mundo não tem mais salvação; ninguém liga para mim; não faço nada direito; todos precisam de mim; etc

 

Obs. A Terapia Cognitivo-comportamental tem uma classificação diferente. De acordo com o modelo cognitivo, a maioria dos transtornos psicológicos se originam no modo distorcido como as pessoas percebem os acontecimentos o que influencia o afeto e o comportamento. Assim, os pensamentos podem ser classificados como:

  1. Pensamentos automáticos: são pensamentos espontâneos que surgem em nossa mente a partir dos acontecimentos do dia a dia. Eles surgem independente de nossas intenções e podem ser ativados por eventos externos e internos. Esses pensamentos alteram nosso temperamento e comportamento. Ex. Sabia que isso ia acontecer; nunca vou ser capaz de fazer nada.

  2. Crenças Intermediárias: As crenças intermediárias correspondem ao segundo nível de pensamento e não são diretamente relacionadas às situações, ocorrendo sob a forma de suposições ou regras. Derivam e reforçam as crenças centrais. Ex. É terrível ser incompetente; sou um fracasso, se não conseguir estudar.

  3. Crenças Centrais ou Nucleares: As crenças centrais constituem o nível mais profundo da estrutura cognitiva e são compostas por ideias absolutistas, rígidas e globais que um indivíduo tem sobre si mesmo. São ideias e conceitos a respeito de nós mesmos, das pessoas e do mundo. São aceitas passivamente, sem grandes questionamentos, são mantidas e reforçadas sistematicamente. Essa definição é semelhante ao Postulado de Caráter. Ex. Eu sou um fracassado; ninguém liga para mim.

 

Elevado – São traumas em que o indivíduo é submetido a uma grave ameaça a sua integridade física ou psicológica. Pode envolver perigo de morte, graves ferimentos, perdas significativas. “A resposta ao evento deve envolver intenso medo, impotência ou horror” (DSM-IV, p. 449). Esses tipos de traumas podem levar o indivíduo a desenvolver transtornos diversos, tais como: estresse pós-traumático, estresse agudo, ataques de pânico, fobias, depressão, ansiedade, transtornos de personalidade.

Tratamento

A maioria das terapias acessa as memórias através da fala, que é uma elaboração que utiliza a região cortical do cérebro, enquanto as memórias traumáticas encontram-se armazenadas no sistema límbico-hipotalâmico-hipofisário, que faz parte do cérebro primitivo, ou no próprio corpo. Para ter acesso a essas memórias é necessário que se utilize uma abordagem que alcance o cérebro primitivo de modo a dessensibilizá-las ou descarregá-las e permitir o livre fluxo dos impulsos nervosos. Como essas memórias são ativadas através de certas percepções, tais como, imagens, sons, cheiros e sensações corporais, essas se tornam a porta de entrada para acesso ao cérebro emocional. Assim, a utilização do EMDR, Brainspotting ou hipnose tem obtido excelentes resultados na superação desses traumas.

Os tratamentos através dessas técnicas visam à elaboração do material traumático de modo a promover sua despotencialização a fim de que deixe de ter poder perturbador. Dessa forma, mesmo que o paciente acesse as memórias, elas não trarão mais nenhuma perturbação, deixando-o livre para assumir o curso de sua vida.

Evidentemente, como cada indivíduo é único, o tratamento é diferenciado e a utilização das técnicas acima deve respeitar o processo individual, sendo que outras formas de atuação também podem ser utilizadas concomitantemente, inclusive as abordagens cognitivas, que utilizam a área cortical do cérebro.

Bibliografia

  1. ARASI, Diana et al. Trauma e EMDR – Uma nova abordagem terapêutica. Brasília: Nova Temática, 2007.

  2. BECK, Judith S. Terapia Cognitivo-comportamental: Teoria e Prática. 2ª Edição - Porto Alegre, Artimed, 2013.

  3. DSM-IVTM – Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. trad. Cláudia Donelles; – 4ª ed. rev. Porto Alegre: Artmed, 2002.

  4. GRAND, David. Cura emocional em velocidade máxima – o poder do EMDR(dessensibilização e reprocessamento através dos movimentos oculares). Brasília: Editora Nova Temática. 2007.

  5. LEVINE, Peter A. O Despertar do Tigre – curando o trauma. São Paulo: Summus, 1999.

  6. ROBLES, Teresa. Concerto para quatro cérebros em psicoterapia. Tradução de Manuel Angel Valencia Rodrigues. Belo Horizonte: Editorial Diamante, 2001.

  7. ROSSI, Ernest Lawrence Ph.D. A Psicobiologia da cura mente-corpo. Tradução de Ana Rita P. de Moraes. Campinas: Editorial Psy, 1997.

  8. SHAPIRO, Francine. EMDR – Dessensibilização e reprocessamento através dos movimentos oculares. Brasília: Editora Nova Temática, 2007.

  9. TenDan, Hans. Cura Profunda. São Paulo: Summus, 1997.

bottom of page